Celestina
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sexta, 04 de junho de 2021

Numa linda manhã de primavera, enquanto João cutucava parelha de mulas que, a trote, deixaram para trás pedreguentas terras da linha Onze, a menina Celestina fez derradeiro sinal de adeus para Sibila. Este momento gravou em sua alma lembrança que nunca mais a deixou. Mal acomodados na velha carroça, a mãe Hermínia segurava o filho no colo e apoiava outros cinco irmãos. Na futura nova morada nasceram outros dois. Atrás, seguia outra carroça com alguns móveis, utensílios e ferramentas. Durante 13 dias enfrentaram lamaçais, atoleiros, poeira e as incertezas de uma viagem sem fim.
A família de João Veronese foi mais uma das muitas que migraram para o Barril na década de vinte. Eram os pioneiros que deixavam as terras velhas das encostas da Serra Geral atraídos pelas promessas de terra vermelha no Norte do Rio Grande. Na linha Boa Esperança, começaram vida nova sobre três ubérrimas colônias e dentro de rancho escurecido pelo picumã e infestado de bicho de pé. Do nome do local retiraram a inspiração para reiniciar a vida, a esperança.
Celestina, como quase todas as meninas agricultoras, não teve escola. O primitivismo civilizatório a que estavam condenados os colonos dizia que bastava o homem saber ler e escrever. A mulher deveria estar atenta ao comando do marido. Este nefasto dogma não deixava que as meninas tivessem infância. Estavam obrigadas a antecipar a vida adulta, casar e gerar filhos até encerrar o ciclo da fecundidade. Trabalho diuturno, vida austera, fé no futuro e total zelo por tudo o que se fazia fertilizavam nova morada que prosperava. Celestina incorporou e guardou no fundo de sua alma valores superiores da família cooperativa, do trabalho como suporte da sobrevivência e da fé na Providência Divina, como rumo.
As dificuldades e o sofrimento inerente ao modo próprio de vida dos colonos eram relativizados pela certeza de vida melhor que cada primavera oferecia à família ao semear e ver a semente multiplicar-se na colheita. Celestina seguia a sina de toda a moça agricultora. Casou e teve 11 filhos com Pio, que a desposou compartilhando os mesmos valores. Mas, se quando foi menina não teve infância, quando mulher também não experimentou outra vida a não ser gerar filhos, trabalhar o tempo todo, suportar o peso e a dureza de ser mãe e esposa em um contexto de precaríssimas condições. O sofrimento, talvez, tenha sido seu mais assíduo companheiro de jornada. A pouca medicina era compensada pela oração e pela assunção da dor como óbolo da criatura sofredora oferecido ao crucificado.
Na cadeira de rodas ela se queixava da dor e perguntava angustiada por que lhe doíam as pernas, as duas com próteses. Mas, mesmo sofrendo e sabendo que no céu não haverá mais dor, ela preferia continuar vivendo na terra. E, assim foi indo. Por pouco não completou 103 anos. Ela foi uma das agraciadas com a Comenda Barril por ter escolhido esta terra como sua morada definitiva. No dia 14 de abril, ela foi levada ao céu. Lá terá dito “ô de casa” segurando na mão de Maria e cercada de anjos, fantasia escatológica que ela imaginava verdade. No céu tomou posse do aposento preparado e prometido por Jesus. Morreu como viveu, fazendo tudo polito como recomendava aos filhos.
Ao ritualizar a despedida de seu esquálido corpo, dentre as manifestações de carinho que a família lhe dedicou, o Dino fez bíblica síntese da vida de Celestina. Disse que ela se fez gente, durante toda a vida, dedicando-se à família, à oração, ao trabalho e assumindo o sofrimento com resignação. Mateus, bisneto de sete anos, lavrou o epitáfio para a história da família dizendo “bisa, a senhora vai viver sempre dentro de mim. Eu nunca vou esquecer da senhora”. Assim se multiplicam as famílias abraâmicas, uma geração contando para outra como se deve viver para que a vida tenha sentido e valha a pena viver.
Está sepultada em modesto jazigo próximo da casa onde viveu 74 anos. Estava pronto fazia anos. Ela pediu para que fosse construído com antecedência, para que, no dia de sua morte, não se dividisse o tempo de ficar os últimos momentos com ela e as demandas do sepultamento. Com certeza, Celestina goza na glória eterna.


 

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